segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A porta

35770215_2f49a392f5 Dona Francisca (personagem fictícia) é dona de casa, casada, e tem três filhos. No último sábado, saiu de casa no final da tarde e foi ao terreiro de Umbanda. De vez em quando, vai até lá pra benzer a roupa de alguém da família, tratar daquela alergia na perna que volta a incomodar de vez em quando ou, quando o clima de casa fica pesado, desabafar sobre o marido que já não lhe dá tanta atenção, ou reclamar dos filhos adolescentes que estão muito rebeldes.

Já no terreiro, pega a senha que lhe deram na entrada, volta pra casa rapidinho pra terminar de cozinhar o feijão, dá uma espiada na novela e volta pro terreiro. Senta ao lado da vizinha, e põe-se a bater papo pra colocar as notícias em dia. Do outro lado, uma mocinha parece tensa e assustada; é a primeira vez que vai ao local. Dona Francisca lhe diz “pra não ter medo, não”, pergunta o que está acontecendo com a moça, explica mais ou menos como funciona o atendimento (“vê se passa com aquele de bigode, aquele é bem fortão”) e aproveita pra contar interminavelmente a história de sua vida.

O trabalho começa, e pra ela não é novidade aquele pessoal de branco, cantando o tempo todo. Ela até acha bonito, mas depois de uns dez minutos se cansa, para de cantar e mostra à vizinha como o afilhado da cunhada do seu primo está crescendo depressa, “olha ele sentado lá, que lindinho”.

No decorrer do trabalho, ouve uns trovões e se preocupa com a chuva e as roupas que ficaram no varal. Vai até à entrada do abaçá e pergunta se ninguém se esqueceu dela, se já não chamaram seu número… e se aquela mulher de vestido rosa não passou na sua frente.

É….

Enquanto frequentava o terreiro como consulente, vi um monte de donas Franciscas. Acho que minha trajetória até à corrente de trabalho foi muito rápida, e acabei me desconectando muito depressa do contato com a realidade da dona Francisca – e das realidades de tantos outros perfis de consulentes. É fato que um grande contingente de pessoas vai à Casa para resolver questões pessoais e/ou familiares, ora abstratas (emocionais), ora concretas (saúde física, saúde financeira…). E tão somente isso. Talvez chegue a espantar se um consulente disser que procurou a Casa pra aprender a perdoar seu desafeto, por exemplo. Nesse contexto, muitas pessoas não conseguem entender a importância do silêncio, da prece, dos pontos cantados – nem de toda a questão litúrgica que envolve o ritual, e que requer respeito, atenção e um mínimo de envolvimento. São irmãos que não entraram (e alguns talvez nunca vão entrar) no “espírito da coisa”. E daí?

Daí que é uma bênção podermos receber a dona Francisca e estar à disposição da Espiritualidade para ajudar a cuidar das dores físicas e emocionais que ela tiver. Que possamos sempre receber dos nossos Guias os recursos necessários para auxiliar todos os irmãos, encarnados e desencarnados, que ali acorrem em busca de ajuda.

Minha função na Casa tem sido receber os consulentes na entrada do abaçá  (a famosa porta) e gerenciar a lista de espera das pessoas que já foram chamadas pela senha, mas que ainda precisam aguardar por espaço físico dentro dos limites do abaçá. Eu e meus companheiros de trabalho temos visto de tudo:

  • consulente que acabou incorporando, sentado no salão da assistência;
  • gente alcoolizada querendo consulta com médium que nem está lá;
  • pessoas “passando mal”, aos prantos, suando frio;
  • consulente obsediado que nos brinda com impropérios porque não-sei-quem “passou na frente”;
  • a dona Francisca, pedindo pra dar uma “passadinha na frente sem ninguém ver” porque já conhece a gente, vai chover e a roupa do varal vai molhar;
  • parente do médium fulano, que está com a senha Y e fica nos olhando com aquela expressão inconfundível de “eu sou filho do Fulano, não dá pra me chamar agora, não?”;
  • “viu, eu tô com pressa, não dá pra ‘aquele cara ali, que tá desocupado’ benzer esta roupa pra mim, não?”;
  • família de oito consulentes que quer subir ao abaçá de uma vez;
  • “eu tô no desenvolvimento (mediúnico), e eu preciso passar com o Pai (chefe do terreiro, com 4358 senhas esperando); (“e eu tô passando aqui no abaçá pela quinta vez pra dizer a mesma coisa, só pra ver se vocês não se esqueceram de mim ou se ninguém passou na minha frente”);
  • 3657 consulentes por noite perguntando: “viu, quantos tem ainda na minha frente? cinco? ah, tá bom; quando chegar a minha vez você me chama? mesmo?”.

Que me perdoem os leitores se essa descrição parecer desrespeitosa. Não é, de forma alguma: foi apenas a forma lúdica que encontrei pra contar como é a rotina de quem exerce esse tipo de função. Na verdade, acho que é prerrogativa do consulente manifestar sua ansiedade, é natural recebermos irmãos obsediados nos enviando vibrações negativas; é de nossa responsabilidade tentar acolher o sofrimento, entender a pressa, perdoar a desconfiança. Nossa postura é tão importante que pode mudar (pra melhor ou pra pior) o padrão vibratório de quem sobe ao abaçá. Ainda estou trabalhando com a cabeça meio “desconectada” da gira, concentrada em não errar, não perder a paciência, não demonstrar irritação nem cansaço; só volto a entrar totalmente na vibração do trabalho depois que o último consulente já está sendo atendido.

Devo confessar que, muitas vezes, a agressividade latente (e às vezes manifesta) de alguns consulentes chega a ser tão grande que é comum a gente passar mal ou se perder na vibração pesada que direcionam contra nós. Ainda bem que podemos contar, no final dos trabalhos, com um dos nossos irmãos para receber uma fundanga, podemos dar passagem aos nossos Guias para uma limpeza e até, quando a coisa ferve, pedir auxílio a alguma das Entidades de trabalho. Mesmo com esses recursos, não é raro chegar em casa com sensação de esgotamento, chateação, desânimo… Ao longo do tempo, muitos companheiros já pediram pra deixar o posto, exauridos, mercê de irmãos que estivessem com mais fôlego.

É claro que também existem o sorriso amigo, a palavra de agradecimento, a confidência - “graças a Deus eu vim aqui, estava a ponto de fazer uma loucura, sabe?”. Sei que não é pra ouvir isso que estamos lá: nosso compromisso é auxiliar o trabalho das Entidades e nossa recompensa é a consciência do dever cumprido (parece meio careta dizer isso, mas só quem experimenta essa satisfação é que pode entender). Contudo, é sempre muito bom ver o alívio e a alegria no rosto dos nossos irmãos.

Pretendo continuar na função, enquanto a Casa precisar. Já é do nosso “folclore” falar sobre a “porta” como falar sobre a Cuca, o Curupira, o Bicho-papão ou o Leão do Imposto de Renda, e eu também me divirto com isso. Deve haver formas de organizar o processo de trabalho pra diminuir o stress que afeta todo mundo, e eu não desisti de pensar sobre isso – nem de ir amaciando o meu orgulho, enquanto as idéias vão se ajeitando.

Ah, sim, antes que eu esqueça: por que uma ilustração de portão japonês no post de um blog umbandista? Segundo a definição da Wikipédia:

Um Torii (…) é um portão tradicional japonês, ligado à tradição xintoísta e assinala a entrada ou proximidade de um santuário.(…) Não há consenso acerca da origem dos torii. No entanto, simbolizam claramente a separação, mas também a proximidade, entre o mundo dos homens e o mundo dos kami.

Como se pode ver na imagem, a idéia de portão separando os dois espaços é abstrata, nada impede que se passe por fora; a diferença entre a dimensão do mundano e do sagrado está na mente.

6 comentários:

Anônimo disse...

adorei! é exatamente assim! no final das contas, acho que conseguiremos domar as ferinhas" que estão fora e também dentro do abaçá. filosofando um pouco: vitória mesmo será quando superarmos o nosso pequeno "eu" e conseguirmos olhar tudo e todos com misericórdia. desafio, hein..... beijokas karinhosas.

Estela disse...

Salve, madrinha anônima (rsrs), sua bênção!
Obrigada por prestigiar este humilde espaço!
Se um dia eu conseguir uma amansadinha na minha fera interior, já fico feliz!
Beijo grande!

Anônimo disse...

Em todos estes anos de trabalho na nossa amada casa, nunca fui convocada a prestar auxílios na "temível porta"... Mas, a Espiritualidade, sábia como sempre, escolhe as pessoas certas. Amei suas colocações e entendo perfeitamente seus questionamentos. Concordo plenamente com você, amaciamos nosso orgulho, adquirimos mais paciência e o melhor de tudo: sentir a satisfação de nossos irmãos que vão a procura de alento. É a nossa tarefa e nosso desejo. Beijos! Parabéns! Roseli

Estela disse...

Ô, Roseli, mas que alegria ler um comentário seu!!!
Ao longo do tempo, tenho recebido inúmeras bênçãos da Espiritualidade que assiste a nossa Casa; uma das maiores, sem sombra de dúvida, é receber tanto amor e carinho de irmãos como você - que respeito e admiro imensamente. Conte comigo sempre que precisar (ainda mais agora, na versão Estela 2.0, de motor amaciado e calibrado pela "porta"...)
Super beijo!

Anônimo disse...

Salve Estela!
Foste muito feliz no retrato do que passamos na relação com a assistência. É o microcosmo ao nosso alcance para aprendizado honesto e sincero. Que Deus ilumine sempre o nosso caminho. Obrigado ao Denis que enviou o link para o teu blog. Saravá fraterno, Milton/Viamão/RS.

Estela disse...

Salve, Milton!

Obrigada por suas palavras, pela visita e pelo incentivo! Que nosso Pai Maior possa sempre nos fortalecer na caminhada. Aproveito para também agradecer ao Denis.

Abraço Fraterno, meu irmão!!

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